A falta de estatísticas confiáveis sobre a microcefalia

Nos últimos quatro meses, e mais intensamente em fevereiro, o Ministério da Saúde, os brasileiros e pessoas de todos os cantos do mundo estão preocupados com a epidemia do vírus zika, que já registrou casos em 30 países, com destaques para o Brasil e a Colômbia.

O Brasil e o mundo estão em estado de alerta; e especialistas têm se reunido e trabalhado em conjunto, em busca de um denominador comum, no que se refere ao aumento “inexplicável” de nascimento de crianças com microcefalia. Eu vou tomar a liberdade de não explicar o que é microcefalia porque você já deve estar cansado de ouvir. Mas minha pergunta é: será que os casos realmente aumentaram em uma proporção alarmante, ou os casos anteriores eram subnotificados, e não apareciam como tal? De fato, o vírus zika é o único responsável pelo surto, ou isso tem a ver com questões socioambientais, já que os maiores surtos foram registrados nos Estados de Pernambuco, Paraíba e Bahia (considerando que não há erros de registros)? Como avaliar o presente e o futuro se não possuímos dados históricos confiáveis?

Falta padronização

Avaliar o presente e prever o futuro se torna uma tarefa difícil, quando não conhecemos o passado, ou sequer podemos confiar nele. É possível que esse seja o caso do vírus zika, e de muitas outras situações; afinal de contas, a falta de conhecimento sobre os dados já aconteceu ou acontece em alguma empresa que você trabalhou.

A falta de padronização também acontece com frequência em pesquisas que não são levadas a sério, e não possuem nenhum rigor estatístico. Acreditem! Elas existem, e são mais comuns do que você imagina.

Sabe o que me preocupa, e deveria preocupar você? A falta de critérios, e a definição de padrão de execução. Se você foi aluno do curso de Big Data em Saúde no Brasil ministrado pelo professor Dr. Alexandre Chiavegatto Filho, provavelmente aprendeu sobre estudos multicêntricos, e sabe bem do que eu estou falando. Resumidamente, esses tipos de estudos são realizados quando há necessidade de coletar dados em localidades diferentes. No entanto, os pesquisadores e profissionais envolvidos, responsáveis por coletar, armazenar e analisar dados; bem como gerar relatórios informativos, definem critérios para que tudo seja feito dentro de um padrão, minimizando as chances de erro, e a ausência de registros; que por acaso é o que aconteceu com o Estado de São Paulo, que deixou de registrar casos porque julgou que não havia necessidade.

São Paulo decidiu não informar todos os casos de microcefalia porque definiu os seus próprios critérios, ignorando orientações do Ministério da Saúde, que todos os outros Estados seguiram. Por isso, houve discrepância entre os dados, e os resultados deveriam ser 12 vezes maior. Ao subnotificar os dados de microcefalia, colocando apenas as mães que relataram manchas vermelhas no corpo, os dados ficaram comprometidos. Além desse fato, é importante lembrar que em 80% dos casos, as pessoas que contraem zika, não apresentam sintomas, nem mesmo as manchas vermelhas. E muitas delas sequer sabem que contraíram o vírus.

É preciso entender e ter consciência do quão importante são esses dados; da necessidade que temos deles representarem a realidade. A falta de padronização na notificação dificulta a realização dos estudos e das ações de saúde pública a serem tomadas. Além disso, a diligência no registro de casos de microcefalia, antes da chegada do zika, é algo inadmissível. Sinceramente, eu espero que o Brasil aprenda com o fato, e comece a registrar dados com mais seriedade. Não tem cabimento avaliar a veracidade dos dados apenas quando for necessário usá-los, pois dependendo da sua natureza não será possível corrigi-los.

Por causa das subnotificações e falta de padronização dos critérios, o Ministério da Saúde tem em mãos estatísticas pouco confiáveis, e que comprometem qualquer avaliação histórica do quadro de microcefalia no Brasil. Com dados insuficientes, é impossível estabelecer o tamanho real de um eventual surto de microcefalia, pois não temos como comparar, por exemplo, se há evolução de registros a cada 10 mil nascidos. Em conjunto, esses fatores comprometem os estudos, e dificultam o caminho para as respostas corretas.

Omissão de dados

Como se não bastasse a falta de estatísticas confiáveis sobre o zika e a microcefalia, o Ministério da Saúde abandonou o caminho da ciência, e decidiu “esconder” os dados (inacreditável). Ao invés da falta de informação, o mais comum nesses casos, é que a cada dia ou semana, apareçam mais dados, pois novos casos tendem a acontecer. Além disso, novas variáveis deveriam ser implementadas, a fim de descobrir alguma correlação que explique o fenômeno.

Não se sabe ao certo quem tomou essa decisão. O fato é que a omissão de dados gerou uma certa revolta entre os pesquisadores e especialistas no assunto. Uma possível razão é que os números não comprovam a teoria do governo, de que o zika causa microcefalia. Se isso for verdade, o que será que aconteceu? Você não acha estranho os casos estarem concentrados em apenas 3 Estados, pertencentes a uma mesma região, e que possuem climas semelhantes? Que verdade o governo está escondendo? Até podem não assumir a culpa, mas não a coloquem no vírus sem provas definitivas; e libertem as mulheres que querem ser mães.

Outra possibilidade é que os dados estavam errados, já que foram identificadas inconsistências; e que, ao analisar novamente as amostras, descobriram que uma parte das crianças não carregava o vírus. Outra possibilidade é que esse número seja muito maior, e que o problema é mais grave do que imaginamos; nesse caso, estamos diante de uma irresponsabilidade estrondosa.

E aí eu lhe pergunto: onde estão os analistas, estatísticos e cientistas de dados do Ministério da Saúde para realizar as análises? Será que sumiram junto com os dados?

É fato que os registros de suspeitas e casos confirmados de zika realmente aumentaram, e precisamos de mais profissionais para analisar os dados gerados; mas convenhamos que é difícil encontrar estatísticos na área da saúde, mesmo Nate Silver afirmando, em uma entrevista 2 dias atrás, que a área de saúde é uma das mais promissoras no campo de análise de dados.

Em 2015, o número de pessoas contaminadas apenas pela dengue foi recorde: 1,6 milhões de casos notificados. Citei a dengue porque ela é transmitida pelo mesmo mosquito que transmite zika e chikungunya: Aedes aegypti. Como os sintomas da dengue, zika e chikungunya são facilmente confundíveis, é possível que muitos casos de zika tenham sido registrados como suspeitos de dengue, já que o Brasil bateu esse recorde.

É possível ver claramente, o que a ausência de definição de critérios e a omissão de dados pode gerar: estatísticas pouco confiáveis. Quando você não conhece seus dados, a informação fica muito prejudicada.

Uma prova de que estamos pisando em terreno arenoso é a mudança nos boletins informativos do Ministério da Saúde. Ele evidencia claramente as incertezas sobre a relação entre má-formação e vírus.

Enquanto as novidades não chegam ao mercado, a confusão de dados permanece e o cenário para a circulação de boatos continua fértil. Desde o início da epidemia, já circularam notícias em redes sociais de que o aumento de casos de microcefalia foi causado por vacinas vencidas aplicadas em gestantes pelo Governo Federal; por um mosquito transgênico usado para combater o Aedes aegypti, e até por um larvicida aplicado na água. Todos os boatos foram refutados pelas entidades de saúde por não terem validação científica.

Você viu como esse cenário está bagunçado e confuso? Sabe como eu fico diante de toda essa bagunça com os dados de zika e microcefalia?

Explodindo de “raiva” quando vejo uma desorganização com os dados

Chega de chutes e achismos! O controle de uma possível epidemia mundial não pode ser decidido na base do empirismo e “bola de cristal”. Parem de analisar números sem direção. Lição número 1: conheçam os dados que estão analisando.

Se me permitem uma opinião, comecem a analisar o número de mulheres que foram infectadas pelo zika durante a gravidez, e que tiveram filhos normais. Descobrir quantas mulheres que foram infectadas pelo zika, e deram à luz crianças saudáveis, é um dos denominadores para resolver esse problema. Quanto maior for esse número, menor é a fração de mulheres infectadas que tiveram filhos com má-formação associada à microcefalia. A partir deste ponto podemos começar a fazer correlações interessantes.

É preciso pensar com “carinho” nos dados. Não os ignore. Precisamos dar a seriedade que eles merecem.

P.S.: Eu só espero que a omissão de dados não seja uma estratégia para inflar os números e reforçar os argumentos para aprovação no Congresso da CPMF para financiar a saúde, como andam dizendo por aí!

Dica: Você já olhou o depósito de água da sua geladeira (Frost Free) que fica parte de trás para coletar a água do descongelamento? Segundo especialistas, larvas do mosquito foram encontradas dentro de coletores das geladeiras.


Fontes

Associated Press. “Cientistas dos EUA veem com cautela ele entre zika e microcefalia”. Portal G1, 19 de fevereiro de 2016: http://glo.bo/2feIDbB

Associated Press. “Ministério da saúde muda forma de divulgar casos de microcefalia”. Portal G1, 17 de fevereiro de 2016: http://glo.bo/2fpQkfI

Bedinelli, Talita. “Bebês vítimas do zika têm lesões cerebrais além da microcefalia”. El País, 19 de diciembre de 2015: http://bit.ly/2f7zDqX 

Bedinelli, Talita. “São Paulo desrespeita regra federal e não reporta o nascimento de quase 200 bebês com microcefalia”. El País, 26 de enero de 2016: http://bit.ly/2fs8H66

Callaway, Ewen. “Zika-microcephaly paper sparks data-sharing confusion”. Nature Journal, 12 February 2016: http://go.nature.com/2fvltNE

Collucci, Cláudia. ” ‘Céticos da Zika’ cobram provas de que vírus é culpado por microcefalia”. Jornal Folha de São Paulo, caderno Cotidiano, 14 de fevereiro de 2016: http://bit.ly/2feEPHo

Formenti, Lígia. “Ministro admite ligação com zika em 40% dos casos de microcefalia”. Jornal O Estadão – caderno Saúde, 19 de fevereiro, 2016: http://bit.ly/2fRjd7C

Nebehay, Stephanie; Hirschler, Ben. “Zika link to birth defects could be proven within weeks: WHO”. Reuters US, 16 February 2016: http://reut.rs/2esQssN

Reinach, Fernando. “Microcefalia: dados sumiram”. Jornal O Estadão – caderno Saúde, 20 de fevereiro, 2016: http://bit.ly/2fvghcm

Reinach, Fernando. “Microcefalia: falta o denominador”. Jornal O Estadão – caderno Saúde, 13 de fevereiro, 2016: http://bit.ly/2edx0VE

UOL Notícias. “Governo diz que “não há dúvida” de relação entre microcefalia e zika”. Seção Ciência e Saúde, 15 de fevereiro de 2016: http://bit.ly/2fvhwsd

Amplie seu conhecimento

Ottoni, Alexandre; Pazos, Deive; Iamarino, Átila (2016, 11, fevereiro). NerdCast 503 – Esse Zika é vírus! (podcast). Recuperado de http://bit.ly/2eD4NpR

Material usado

Imagem do personagem “raiva” do filme Divertida mente: http://bit.ly/2f2WaCv

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